02/12/2011 09:28
A palavra “evangélicos” aparece em três sentidos: no sentido amplo, europeu, é apenas sinônimo de protestante; no sentido amplíssimo, latinoamericano, é sinônimo de todo cristão não-católico romano (o IBGE inclui, até, mórmons e testemunhas de Jeová); outro, restrito, específico, no sentido inglês, representa uma vertente da Igreja com ênfase no relacionamento pessoal com Cristo, em reação a uma religião estatal e sacramentalista.
Embora o termo “evangélico” seja encontrado na Patrística e na Reforma, ele adquire um conceito mais claro e se torna um movimento na Inglaterra, na segunda metade do século XVIII e primeira metade do século XIX, culminando com a organização da primeira Aliança Evangélica em 1847. Resgatando uma herança que vem de Wycliffe, no século XIV, chegando até os Avivamentos, passando pela confessionalidade reformada, o puritanismo e o pietismo, deságua no movimento missionário do século XIX, do qual foi a sua proposta principal. A escatologia do movimento missionário ou era posmilenista ou amilenista, com clara opção por uma participação social e uma influência histórica.
J. I. Packer destaca como marcas do evangelicalismo:
1. A Autoridade das Sagradas Escrituras;
2. A Pecaminosidade da Raça Humana;
3. A Expiação por Cristo na Cruz;
4. A Necessidade de Conversão, ou experiência de Novo Nascimento;
5. O Mandato Missionário Imperativo para todos os Cristãos. No contexto inglês do século XIX, se poderia acrescentar um sexto item: a Responsabilidade Social.
Evangélicos no Brasil
As missões protestantes históricas que se estabeleceram no Brasil entre 1855 e 1901 foram todas marcadas por uma identidade evangélica, o que significava um alto grau de consenso teológico, a despeito de diferenças periféricas, como sentido e forma dos sacramentos/ordenanças ou formas de governo eclesiástico. Esse consenso foi mantido entre as igrejas históricas brasileiras por mais de um século. Ele foi reforçado com a reação do Congresso do Panamá, de 1916, a equivocada decisão do Congresso Ecumênico de Edimburgo, de 1910, de excluir a América Latina do esforço missionário, por se tratar de um “continente cristão”. No Panamá se reafirmou a necessidade de se evangelizar – e em unidade – a América Latina com seu cristianismo nominal e sincrético. Por alguns anos uma entidade produziu um material de Escola Bíblica Dominical para a maioria das denominações, reforçando esse lastro comum, também implementado pela teologia do que se cantava nas igrejas, a partir do primeiro hinário, o “Salmos e Hinos”, compilados pela pioneira congregacional Sarah Kalley.
O principal instrumento de identidade e unidade desse período foi a Confederação Evangélica, que funcionou como importante elemento aglutinador e representativo do protestantismo nacional entre 1934 e 1964.
O dissenso protestante começa com a chegada do pentecostalismo de vertente “branca” (isolacionista, pré-minilenista/pré-tribulacionista) nos anos 1910, já refletindo as controvérsias norte-americanas da época, a partir do fundamentalismo, que começou como um movimento confessional em reação ao Liberalismo, mas, que, posteriormente, degenerou em uma ideologia sectária, anti-intelectual, e, até racista. O fundamentalismo inicial tinha as mesmas ênfases do evangelicalismo inglês dos séculos anteriores, adicionando-se os milagres e a segunda vinda.
A presença do liberalismo no Brasil foi muito periférica, e a do fundamentalismo, posterior e lenta (embora fundamentalismo e evangelicalismo compartilhem de doutrinas básicas comuns). Como a América Latina, a maioria das igrejas brasileiras optou por não se envolver com os três Conselhos Ecumênicos mundiais, mas foram afetadas pelas tensões ideológicas da Guerra Fria, e muito afetadas pelo ciclo de regimes militares no continente.
A Fraternidade Teológica Latino-americana (FTL) surge no início dos anos 1970 como uma escola de pensamento evangélico tomando o continente e seus problemas a sério e em abertura para a contribuição das Ciências Sociais. Nos Estados Unidos, no pós-Segunda Guerra Mundial, surge o movimento neo-evangélico como reação moderada aos exageros do fundamentalismo, editando a revista “Christianity Today” e motivando a realização do Congresso de Evangelismo de Berlim, 1966, gênese do que seria, a partir do evento de 1974, o Movimento de Lausanne, inicialmente não bem recebido no Brasil, por ser considerado avançado demais pelos conservadores e moderado demais pelos avançados.
A Confederação Evangélica havia sido fechada durante do regime militar e ficamos muitos anos sem um órgão aglutinador e promotor da unidade. Os congressos brasileiros e nordestino de evangelização irão sinalizar um novo tempo, que se desdobra com a criação da AEvB (Associação Evangélica Brasileira), que marca época, mas sofre uma crise insanável em decorrência da personalização da sua liderança, criando novo vácuo, em uma igreja já marcada por uma amnésia histórica, com a Escola Dominical enfraquecida e a teologia evangélica dos hinários substituída pela vagas odes/mantra a uma divindade monoteísta promotora de bênçãos individuais que marcam o “louvor” atual, em um declínio do consenso, agravado pela chegada da Teologia da Batalha Espiritual, da Teologia da Prosperidade e pela fragmentação denominacionalista, com a racionalidade institucional cada vez mais substituída pelas lideranças carismáticas caudilhescas e o surgimento de “dinastias eclesiásticas”.
É com esse pano de fundo que estamos criando a Aliança Evangélica, que se espera seja uma herdeira atualizada e brasileira da Aliança Inglesa de 1847 e suas marcas confessionais inegociáveis.
O quadro fracionado, confuso e divergente do protestantismo brasileiro não faz prever a criação de uma barca, onde caibam todos os bichos, mas de uma frotilha, onde o nosso barco, de início modesto, pretende estar aberta aos evangélicos, crentes e éticos, comprometidos com a identidade e a unidade sonhada pelo Senhor da Igreja.
As ações do nosso presente e os planos para o nosso futuro não poderão se dar sem a fidelidade ao legado do passado. Revitalizar o evangelicalismo em unidade, a despeito dos óbices da época (individualismo, subjetivismo, relativismo, hedonismo) é a nossa tarefa, ajudando-nos o Senhor.
Nota
Artigo baseado na preleção do autor feita no 1º Fórum da Aliança Evangélica no dia 25 de novembro de 2011, em Brasília (DF).
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É bispo anglicano da Diocese do Recife e autor de, entre outros, Cristianismo e Política — teoria bíblica e prática histórica e A Igreja, o País e o Mundo — desafios a uma fé engajada.
Fonte: https://www.ultimato.com.br/conteudo/a-historia-dos-evangelicos